Para alguns pais, criança não sofre, não tem depressão, não tem ansiedade, não guarda ressentimentos ou mágoas de situações dolorosas vividas. Muitos pensam que a criança vive em um mundo de ilusão, fantasia, brincadeiras, alienada dos
acontecimentos da vida. A realidade de um psicoterapeuta de crianças revela o contrário: a criança está ligada no mundo e principalmente naqueles que lhe são significativos. Todo sofrimento percebido nos entes queridos ou causado por
eles afeta profundamente seu comportamento, suas emoções e a forma de pensar a si mesma e ao mundo, a ponto de gerar perturbações psicológicas que não são esquecidas pela criança, e sim disfarçadas. Por ter uma forte sensibilidade
sensorial e afetiva, a criança é capaz de captar as nuances emocionais e as alterações de humor das pessoas com quem convive e, em seu egotismo primário, toma-as para si como se ela fosse a fonte dos problemas, da tristeza, da raiva
dos pais (OAKLANDER, 2006).
A infância feliz, protegida, segura não existe para muitas crianças. Crianças que vivem em ambientes desfavoráveis, hostis, desamorosos precocemente criam condutas adaptadoras disfuncionais para
a manutenção do equilíbrio emocional próprio e da família. A capacidade que a criança tem de descobrir formas criativas para enfrentar um ambiente estressante, hostil ou negligente é formidável, uma vez que a dimensão sensorial/intuitiva
predomina em sua existência. Perls, Goodman e Hefferline (1997) afirmam que “a psicologia é o estudo dos ajustamentos criativos [...] a psicologia anormal é o estudo da interrupção, inibição ou outros acidentes no decorrer do ajustamento
criativo” (p. 45). O ajustamento criativo representa o processo dinâmico e ativo de interação do indivíduo com o ambiente para solucionar situações e restaurar a harmonia, o equilíbrio, a saúde do organismo, o qual se dá por meio da
auto-regulação (processo espontâneo e inato em nosso organismo), que visa à satisfação das necessidades primordiais do momento, considerando as possibilidades ambientais. Contudo, nem sempre o meio atende às necessidades primárias
da criança que, para se auto-regular, modifica a necessidade original, realizando um ajustamento criativo coerente com as possibilidades do meio de supri-la.
Uma criança pode desenvolver uma fobia específica, como a melhor
forma de enfrentar um pai violento, e ser muito amadurecida, assumindo condutas assertivas a fim de proteger a mãe e cuidar dos irmãos. A criança saudável deixa-se guiar pela sabedoria do seu organismo, que reconhece as suas necessidades
originais, tenta realizá-las seguindo uma ordem de importância e escolhe qual a melhor ação em uma dada situação para se satisfazer, evitando danos a si e prejuízo nas suas relações pessoais. No entanto, nem sempre a criança faz suas
escolhas de forma consciente e racional.
A doença significa que a criança interrompeu sua capacidade de dar respostas criativas a específicas situações conflitivas e às suas necessidades internas. Passou a perceber o outro
de uma forma petrificada, criando padrões de comportamento e interação repetitivos vinculados a uma gestalt fixada, que enrijece a formação de novas figuras e interrompe o fluxo natural da percepção das necessidades. Certa criança
que só respondia de forma agressiva ao meio, mostrava uma fixação no pensar (“ninguém me entende, só brigam comigo, só me dizem não”), no sentir (“sinto raiva demais porque ninguém gosta de mim”) e no agir (“vou me defender da rejeição
dos outros e das frustrações que sofro”) que impedia o contato interpessoal nutritivo devido a constantes experiências de intolerância que contribuem na formação de uma pobre auto-estima.
O adoecer, portanto, é uma forma de auto-regulação (mesmo que vise atender as necessidades secundárias, as quais se sobrepõem as originais), que revela uma personalidade fazendo uso de seus recursos psíquicos particulares para enfrentar
o sofrimento, a dor, a tensão. Os sintomas aparecem como tentativas de ajustamentos criativos (comportamentos, gestos, pensamentos, tensões corporais) que surgem para neutralizar a angústia, sinalizando que uma necessidade importante
está insatisfeita e, por conseqüência, uma gestalt está aberta. Os sintomas mascaram o drama real, criam um falso conflito, tornando-se o núcleo neurótico. A enurese noturna, por exemplo, pode ser um sintoma de ansiedade que encobre
o drama relacional da imaturidade dos pais e da dependência emocional mútua existente entre a criança e as figuras parentais.
Na doença, portanto, há uma tentativa de cura, de retornar à saúde e ao equilíbrio. A pessoa, ao
buscar entender seu adoecimento, dá um passo em direção ao caminho do autoconhecimento. A criança adoecida perdeu a capacidade de manter um contato nutritivo consigo e com o outro, cortou a conexão com o corpo e vivencia um confuso
senso de eu que abala a autoconfiança, o auto-suporte, a auto-estima Já a criança saudável desenvolve boa capacidade para lidar com a ansiedade e com momentos de tensão. É capaz de esperar, consegue adiar a gratificação e tolerar a
frustração.Aprende que amar é estabelecer troca com o outro, o que a torna capaz de dar e receber, efetuar condutas de reparação, preocupar-se com o outro e assumir responsabilidades, mostrando que desenvolveu mecanismos flexíveis
de ajustamento criativo e de adaptação às demandas das situações.